Muitas meninas escondem seu autismo, algumas vezes evadindo-se bem do diagnóstico até a fase adulta. Esses esforços podem ajudar as mulheres do espectro autista nas áreas social e profissional, mas também podem causar sofrimento intenso.
Nos últimos anos, cientistas verificaram que muitas mulheres do espectro autista “camuflam” os seus sinais de autismo. Esse mascaramento pode explicar, pelo menos em parte, porque 3 a 4 vezes mais meninos do que meninas são diagnosticados. Isso também pode explicar porque meninas diagnosticadas jovens tendem a apresentar traços graves, e meninas altamente inteligentes são frequentemente diagnosticadas tardiamente. (Pesquisadores também descobriram que homens do espectro autista também camuflam, mas não tão comumente quanto mulheres).
Quase todo mundo faz pequenos ajustes para se adequar melhor ou estar em conformidade com as normas sociais, mas a camuflagem implica em esforço constante e elaborado. Isso pode ajudar as mulheres com autismo a manterem seus relacionamentos e suas carreiras, mas esses ganhos geralmente têm um custo alto, incluindo exaustão física e ansiedade extrema.
Nem todas as mulheres que camuflam dizem que gostariam de ter conhecimento sobre seu autismo anteriormente, e os pesquisadores reconhecem que a questão apresenta muitas complexidades. Receber um diagnóstico formal geralmente auxilia as mulheres a se entenderem melhor e a obter maior apoio, mas algumas mulheres afirmam que isso vem com seus próprios ônus, como um rótulo que estigmatiza e expectativas mais baixas de realização.
Como muito mais meninos são diagnosticados com autismo do que as meninas, os clínicos nem sempre pensam em autismo quando vêem meninas quietas ou que parecem estar lutando socialmente. William Mandy, um psicólogo clínico de Londres, diz que ele e seus colegas rotineiramente costumavam ver garotas que foram levadas de uma clínica para a outra, muitas vezes diagnosticadas incorretamente com outras condições. “Inicialmente, não tínhamos idéia de que elas precisavam de ajuda ou apoio quanto ao autismo”, diz ele.
Com o tempo, Mandy e outros começaram a suspeitar de que o autismo apresenta-se diferente em meninas. Quando entrevistavam meninas ou mulheres no espectro autista, nem sempre conseguiam perceber sinais de autismo, mas vislumbraram um fenômeno que chamaram de “camuflagem” ou “mascaramento”. Em alguns estudos pequenos a partir de 2016, os pesquisadores confirmaram que a camuflagem é comum pelo menos entre mulheres com alto quociente de inteligência (QI). Eles também notaram possíveis diferenças entre sexos que ajudam as meninas a escaparem da observação dos médicos: enquanto os meninos com autismo podem ser hiperativos ou parecerem comportar-se mal, as meninas geralmente parecem ansiosas ou deprimidas.
No ano de 2017, uma equipe de pesquisadores dos Estados Unidos ampliou esse estudo. Eles visitaram vários pátios de escolas durante o recreio e observaram as interações entre 48 meninos e 48 meninas com idades entre 7 e 8 anos, dentre os quais metade de cada grupo foi diagnosticada com autismo. Verificaram que as meninas com autismo tendem a ficar perto das outras meninas, entrando e saindo de suas atividades. Em contraste, meninos com autismo tendem a brincar sozinhos. Médicos e professores buscam o comportamento de isolamento social, entre outras coisas, para identificar crianças no espectro autista. Mas este estudo revelou que, usando apenas esse critério, eles não reconheceriam muitas meninas com autismo.
“Meninas e meninos com desenvolvimento típico brincam de maneira diferente”, diz Connie Kasari, pesquisadora da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que co-liderou o estudo. “Enquanto muitos garotos estão praticando um esporte”, diz ela, “as garotas costumam conversar, fofocar e se envolver em relacionamentos íntimos”. As meninas com desenvolvimento típico do estudo passavam rapidamente de um grupo para outro, diz ela. As meninas com autismo pareciam estar fazendo a mesma coisa, mas os pesquisadores verificaram que o que estava realmente acontecendo era diferente: as meninas com autismo eram rejeitadas repetidamente dos grupos, mas persistiam ou tentavam se unir umas às outras. Segundo os cientistas, essas meninas podem estar mais motivadas a se adaptar do que os meninos, então trabalham mais para isso.
Mesmo quando os professores sinalizam a necessidade de uma avaliação do autismo em meninas, as medidas diagnósticas padrão podem falhar no reconhecimento do autismo. Por exemplo, em um estudo de 2017, os pesquisadores observaram 114 meninos e 114 meninas com autismo. Eles analisaram as pontuações das crianças na Escala de Observação para Diagnóstico do Autismo (ADOS) e em questionários baseados em relatos de pais sobre traços de autismo e habilidades de vida diária, como se vestir. Eles descobriram que, mesmo quando as meninas têm pontuações na ADOS semelhantes às dos meninos, elas tendem a ser mais gravemente prejudicadas: os pais das meninas incluídas no estudo classificaram suas filhas como inferiores aos meninos em termos de habilidades de vida diárias e com maiores dificuldades de consciência social e interesses restritos ou comportamentos repetitivos. Segundo os pesquisadores, meninas com características menos graves, especialmente aquelas com QI alto, podem não ter atingido pontuação alta o suficiente na ADOS para serem incluídas em sua amostra.
“Esses testes padrão podem não identificar muitas meninas com autismo, porque foram projetados para detectar essa condição em meninos”, diz o pesquisador principal Allison Ratto, professor assistente do Center for Autism Spectrum Disorders at Children’s – National Health System em Washington, D.C. Por exemplo, os testes fazem triagem para interesses restritos, mas os médicos podem não reconhecer os interesses restritos apresentados pelas meninas com autismo. Elas geralmente são atraídas por animais, bonecas ou celebridades – interesses que se assemelham aos de seus pares típicos e, assim, colocam-nas fora do radar. “Talvez precisemos repensar nossas medidas”, diz Ratto, “e talvez usá-las em combinação com outras medidas”.
Antes que os cientistas possam criar ferramentas melhores para triagem do autismo, precisam caracterizar a camuflagem com maior precisão. Um estudo de 2017 estabeleceu uma definição com finalidade de pesquisa: “camuflar” é a diferença entre como as pessoas parecem em contextos sociais e o que está acontecendo com elas em seu interior. “Se, por exemplo, alguém tem traços intensos de autismo, mas tende a não demonstrá-los em seu comportamento, a disparidade indica que está se camuflando”, diz Meng-Chuan Lai, professor assistente de psiquiatria da Universidade de Toronto, Canadá, que trabalhou no estudo. A definição é necessariamente ampla, incluindo qualquer esforço para mascarar uma característica de autismo, desde evitar comportamentos repetitivos ou falar sobre interesses obsessivos, até fingir seguir uma conversa ou imitar o comportamento neurotípico.
Para avaliar alguns desses métodos, Mandy, Lai e seus colaboradores, no Reino Unido, pesquisaram 55 mulheres, 30 homens e 7 indivíduos transgêneros ou identificados com gênero “outro”, todos diagnosticados com autismo. Os pesquisadores perguntaram o que motiva esses indivíduos a mascarar seus traços de autismo e quais técnicas usam para atingir seu objetivo. Alguns participantes relataram que camuflaram para se relacionar com amigos, conseguir um bom emprego ou encontrar um par romântico.
Os adultos participantes da pesquisa descreveram um repertório imaginativo de ferramentas que utilizam em diferentes situações para evitar sofrimentos e ganhar aceitação. Se, por exemplo, alguém tem dificuldade em iniciar uma conversa, ela pode praticar sorrindo primeiro, diz Lai, ou preparar piadas para “quebrar o gelo”. Muitas mulheres desenvolvem um repertório de personas para diferentes ocasiões. Jennifer, diagnosticada com autismo aos 45 anos, diz que estuda o comportamento de outras pessoas e aprende gestos ou frases que, para ela, parecem projetar confiança e freqüentemente as pratica na frente de um espelho.
Kajsa Igelström, professora assistente de neurociências na Universidade de Linköping, Suécia, e seus colaboradores entrevistaram 342 indivíduos, a maioria mulheres e alguns transexuais, sobre a camuflagem de movimentos repetitivos. Muitos dos participantes eram auto-diagnosticados, mas 155 mulheres têm o diagnóstico formal de autismo. Quase 80% dos participantes tinham tentado usar estratégias para tornar os movimentos repetitivos menos detectáveis, diz Igelström. O método mais comum é redirecionar a energia para movimentos musculares menos visíveis, como sugar e apertar os dentes ou tensionar e relaxar os músculos da coxa. A maioria também tenta canalizar sua necessidade de estimulação para movimentos mais aceitáveis socialmente, como tocar uma caneta, rabiscar ou brincar com objetos embaixo da mesa. Muitos tentam restringir seus movimentos para as ocasiões em que estão sozinhos ou em um lugar seguro, como com a família. Igelström verificou que alguns indivíduos tentam evitar os movimentos por pura vontade ou os restringem, como por exemplo, sentando em suas mãos.
Todas essas estratégias exigem um esforço considerável. O esgotamento foi uma resposta quase universal na pesquisa britânica de 2017: os adultos entrevistados descreveram sentir-se completamente esgotados – mentalmente, fisicamente e emocionalmente. Uma mulher, diz Mandy, explicou que após camuflar por qualquer período de tempo, precisa enrolar-se em posição fetal para se recuperar. Outras disseram que sentem que suas amizades não são reais porque são baseadas em uma mentira, aumentando sua sensação de solidão. Muitas disseram que desempenharam tantos papéis para se disfarçar ao longo dos anos, que perderam de vista sua verdadeira identidade.
A grande maioria das mulheres diagnosticadas tardiamente diz que não ter sabido anteriormente sobre seu autismo provoca sofrimento. Em um pequeno estudo de 2016, Mandy e seus colaboradores entrevistaram 14 mulheres jovens não diagnosticadas com autismo até o final da adolescência ou a idade adulta. Muitas descreveram experiências de abuso sexual. Também disseram que, se sua condição fosse conhecida, teriam sido menos incompreendidas e alienadas na escola. Também poderiam ter recebido o suporte necessário mais cedo.
É somente após um diagnóstico que uma mulher pode perguntar: “Quais partes de mim são um ato e quais partes de mim estão escondidas? O que eu tenho de valor dentro de mim mesma que não pode ser expresso porque estou constantemente e automaticamente camuflando minhas características autistas? Para Igelström, “Nenhuma dessas perguntas pode ser processada sem primeiro receber o diagnóstico, ou pelo menos identificar-se, e depois reviver o passado com esse novo insight. E para muitas mulheres, isso acontece tardiamente em sua vida, após anos de camuflagem de um modo muito descontrolado, destrutivo e subconsciente, com muitos problemas de saúde mental como consequência ”.
O diagnóstico leva algumas mulheres a abandonar a camuflagem. “Perceber que eu não sou doente, que eu simplesmente tenho uma neurologia diferente da maioria da população e que não há nada de errado comigo do jeito que sou significa que não vou esconder quem sou apenas para me encaixar ou deixar pessoas neurotípicas mais confortáveis”, diz Katherine Lawrence, 33, diagnosticada com autismo aos 28 anos.
Outras aprendem a fazer a camuflagem trabalhar para elas, suavizando seus efeitos negativos. Elas podem usar técnicas de mascaramento quando estabelecem um novo relacionamento, mas com o tempo tornam-se mais autênticas. Aquelas que sentem que a camuflagem está sob seu controle podem planejar uma pausa, desde ir ao banheiro por alguns minutos até deixar um evento mais cedo ou desistir completamente do mesmo. “Eu aprendi a cuidar de mim melhor”, diz Delaine Swearman, 38. “A estratégia é a autoconsciência”.
Texto traduzido e adaptado de: